Linguagem não há de ser ferramenta de poder

5 minutos
Mar 12, 2022 5:56:06 PM

“Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
[…]

O que quer
O que pode esta língua?”

Língua, Caetano Veloso.

Em 1984, ainda em LP, Caetano lançou em parceria com Elza Soares a música Língua, e é com essa melodia que hoje, quase 40 anos depois, te chamo para acharmos uma resposta. O que pode esta língua?

Logo de cara me deparo com o primeiro desafio dessa conversa, a metalinguística me toma pelo braço, exige atenção, cuidado e a lembrança de que essa resposta talvez seja um primeiro rascunho para muita gente – como ainda é para mim – então sobretudo, vamos começar a considerando incompleta. Esse é um texto incompleto. 

Há sete minutos de metrô do Museu da Língua Portuguesa e há meses de isolamento social, minha pesquisa se fez em casa e ao longo dos dias tentei entender, através de conteúdo acessível e gratuito, como linguagem neutra pode ser ferramenta importante na construção de um bem estar social e corporativo. 

De “vossa mercê” a “você”, da saída do hífen e do trema à entrada do K, W, Y – a verdade é que nossa língua muda. Ela é falada, é sentida, é incorporada, e pode até se mostrar um pouco atrasada, mas a certeza que temos é que ela é contínua, é moldada com base em nós, no modo como eu, você, seu avô e a próxima geração vão se expressar.

O sexismo linguístico, assunto muito comentado em 2014, inicia nosso debate. Sua definição consiste em uma discriminação, onde a língua ultrapassa sua função e começa a exercer um poder de gênero. A língua fala mais do que de se diz, é o poder da palavra. 

O masculino é um falso genérico, começamos daqui: “o homem ocidental”, “os funcionários”, “os alunos”, por que o pronome feminino incomoda tanto nesses casos? Por que utilizamos tão pouco? Por que era polêmico o uso da palavra “presidenta”, se o termo estava correto? Esse é o primeiro exercício, tentar prestar atenção na linguagem que você e sua empresa utilizam.

Que tal então ao invés de “os diretores” usar “diretoria”, ao invés de “os chefes” optar por “chefia”, trocar “coordenadores” por “coordenação”? Essa já é uma maneira de diminuir a barreira sexista da nossa linguagem e ir aos poucos tirando esse viés machista que ela demonstra, permitindo maior inclusão. Ainda que essa não alcance a neutralidade, que ainda se mostra mais controversa, podemos ter um olhar mais atento ao modo como nos comunicamos.

Mesmo com o movimento pela igualdade de gênero não sendo compreendido em sua totalidade na nossa sociedade estruturada para questioná-lo, o conceito de neutralidade é ainda mais nebuloso. Se partimos do entendimento que fomos ensinados a reconhecer dois gêneros, o masculino e feminino, chamamos isso de binaridade. A não-binariedade então, aborda pessoas que não se identificam com essa normatividade de gênero. Pessoas trans, intersexo, fluidas, são várias afirmações de identidade possíveis dentro desse guarda-chuva. E aí que entra a neutralidade, uma alternativa não só linguística mas também social para que evitemos impor esse padrão de masculino/feminino e assim diminuir barreiras discriminatórias, entendendo que não existem papéis ou funções sociais definidos a partir de uma afirmação pessoal identitária.

Através dessa compreensão inicial, podemos expandir um pouco o nosso vocabulário para maior inclusão da não-binariedade. No português aprendi que ainda não temos substantivos neutros, essa é a real, sempre tem um artigo ou contexto social que o derruba. Vi um exemplo colocado pelo Jonas Maria, referência citada ao fim desse texto e que foi estudo de grande valia para essa escrita, que cai muito bem na explicação, o uso da colocação “os governantes”, percebe como ainda tem o caráter masculino, não só do artigo como de contexto histórico social da profissão? e se substituirmos como feito pela presidenta, seria governanta? Puts.

A linguagem neutra não tem como objetivo ser excludente à mulher ou sobrepor o debate feminista mas sim ser uma alternativa para uma linguagem sem segregação ou imposição de gênero. É interseccionalidade. Mesmo que você – ainda- não tenha pessoas trans em sua empresa ou círculo social, a linguagem neutra se faz necessária para combater essa conformidade do padrão normativo, é um convite para inclusão através do diálogo. 

Se estamos falando sobre incluir, não faz o menor sentido utilizar X ou @ como indicativos dessa pauta, é errado e raso! Como seria sua pronúncia? Não existe candidatxs ou candidat@s, além de ser uma forma também capacitista, termo que utilizamos para indicar preconceito social para com as pessoas com deficiência. Pessoas com dislexia, TDAH, TEA, cegos e surdos não conseguem compreender essa alternativa de linguagem. Então, postando aquela campanha de inclusão da sua empresa, você acaba na verdade excluindo. É de novo a interseccionalidade, a busca coletiva para que a língua não exerça poder nenhum, sobre ninguém.

Algumas opções inclusivas são os sistemas Elu, Ile, Ilu, El, por exemplo, elu se candidatou, Ile se candidatou, Ilu se candidatou, el se candidatou. E trocar os substantivos e adjetivos que terminam a/o por e, como linde, amigue, ou até mesmo e mais simples, suprimir artigos do nosso cotidiano. Ah, isso não se aplica para animais e objetos, ok? 

Com costume, atenção e escuta, conseguimos expandir nossa língua para que ela não demarque, não imponha, não segregue e dificulte para aquele que detém desse lugar de fala.  Se sua empresa busca esse tipo de posicionamento, o mínimo que se espera é que seja feito da maneira correta, né? Tem muita gente boa e preparada disponível para esse tipo de consultoria. Além daquela boa e velha roda de bar com amigues se ajudando e crescendo juntes. 

É possível! O Latim e grego antigo tinham três pronomes, feminino, masculino e neutro. Assim como o Russo de hoje. Na argentina, a universidade de Buenos Aires já utiliza linguagem inclusiva. O Oxford English Dictionary e dicionário inglês americano, adicionaram a palavra “they” como pronome singular, devido o uso pelas pessoas não-binárias, sendo reconhecido pelo dicionário Merriam-Webster como a palavra do ano em 2019, com um aumento de mais de 300% nas buscas pelo significado. 

Bom Caetano, já foi tempo de Todo Homem. O que pode esta língua? pode ser transformação, pode ser soma no fim dos podres poderes, pode ser inclusão, pode ser bem estar, uma conversa incompleta, um espaço contínuo e aberto, assim como esse texto. Que como você, mais do que saber, tenho vontade e quero te ter comigo nessa jornada.

Esse texto foi escrito através de referências como o conteúdo para o youtube de Jonas Maria, homem trans, com formação em Letras. Pele Gioni Caê e seu Manual para uso da linguagem neutra em língua portuguesa. Pelo Observatório de gênero e seu Manual para uso não sexista da linguagem. Pelo artigo “O uso da linguagem neutra como visibilidade e inclusão para pessoas trans não-binárias na língua portuguesa: A voz “del@s” ou “delxs”? Não! A VOZ “delus” de Héliton Diego Lau, da Universidade Federal do Paraná. Pelo artigo “A produção do sexismo na linguagem: gênero e poder em dicionários da língua portuguesa” de Ana Lúcia Dacome Bueno, da Universidade Estadual de Maringá. Obrigada por me ajudar nesse caminhar, me junto hoje à vocês.

*Esse texto reflete a opinião da pessoa autora e não necessariamente da 99Hunters

Ainda sem comentários

Compartilhe com a 99 o que você pensa